A tradição cristã é o testemunho cristão que se coaduna com a mensagem apostólica autorizada por Cristo. Ela é de suma importância para a propagação e manutenção da mensagem cristã, conforme exposta na Escritura. Mas apesar de toda essa importância, o tema da tradição cristã no meio protestante costuma ser relegado à marginalidade. No meio evangélico a ênfase sobre a tradição é mais negativa que positiva. Afirma-se, corretamente, que a tradição não é autoridade absoluta, a Escritura o é. Afirma-se que tradição não é inerrante, a Escritura o é. E essas afirmações são, de fato, verdadeiras. Contudo, faz-se necessário afirmar também o aspecto positivo da tradição. É preciso definir o seu conteúdo e escopo, e reiterar o seu papel, principalmente enquanto este é tão relevante para a igreja contemporânea, que é cercada de uma sociedade secular hiperpluralista e subjetivista, sempre disposta a destruir o passado ao invés de restaurá-lo.
O objetivo desta série de textos é falar a respeito do papel e da importância da tradição para o pensamento reformado. Não trago nada de novo. Estes textos são resultados de pesquisa, e há livros bem densos sobre o assunto. Contudo, tentarei ser simples e sucinto, a fim de que o leitor possa ter um ponto de partida suficiente para pesquisas posteriores.
Definição
Para uma compreensão adequada do tema, é necessário definir o significado do termo “tradição”. É fato que esse termo recebe diferentes tratamentos ao longo da história da igreja; tanto em sua definição quanto no uso e no valor que lhe é conferido. Ao analisar simplesmente o termo, pode-se encontrar uma definição básica em dicionários, como o Dicionário Etimológico de Língua Portuguesa, que diz que tradição é o “ato de transmitir ou entregar ‘transmissão oral de lendas, fatos, valores espirituais etc., através de gerações”[1] O dicionário Houaiss traz uma definição mais ampla:
1 ato ou efeito de transmitir ou entregar; transferência 2 comunicação oral de fatos, lendas, ritos, usos, costumes etc. de geração para geração (t. esquimós) 3 herança cultural, legado de crenças, técnicas etc. de uma geração para outra 3.1conjunto dos valores morais, espirituais etc., transmitidos de geração em geração (a geração hippie rompeu com a t.) 4 transmissão de uma notícia ou de um fato (t. oral) 5 em certas religiões, conjunto de doutrinas essenciais ou dogmas não explicitamente consignados nos escritos sagrados, mas que, reconhecidos e aceitos por sua ortodoxia e autoridade, são, por vezes, us. na interpretação dos mesmos 6 aquilo que ocorre ao espírito como resultado de experiências já vividas; recordação, memória, eco 7 tudo o que se pratica por hábito ou costume adquirido 7.1uso, costume (a t. do feijão com arroz)[2]
Essa definição apresenta alguns aspectos importantes do tema . É possível notar que o termo “tradição” se refere tanto ao ato de se transmitir quanto ao conteúdo que é transmitido. Ela é, segundo Packer, tanto o processo de se “passar adiante” um conteúdo quanto “a soma daquilo que é passado”.[3] Também se nota que esse conteúdo é revestido de certa autoridade, pelo fato de ter sido transmitido. Além disso, a tradição pode ser constituída tanto de um conteúdo formal (doutrina, lendas, notícias, histórias) quanto de práticas, hábitos e costumes. A igreja tem seus próprios meios de guardar e transmitir tradição. Packer enumera alguns:
[…] pronunciamentos eclesiásticos oficiais, catequização pastoral, pregação e ensino, palavras e cânticos usados no culto, a ética de uma determinada congregação ou denominação, materiais impressos e recursos dos meios de comunicações e intercâmbios pessoais entre o povo cristão.[4]
J. I. Packer
A tradição, até mesmo da maneira em que é vista na Escritura, pode ter uma conotação boa ou ruim. É uma palavra evoca sentimentos bons ou ruins, dependendo do contexto e de quem fala. Como Packer afirma, há boas e más tradições, há tradições que são “cegas e cegadoras”, e outras que são “sábias e esclarecedoras”, e o desafio está em saber discernir cada uma como tal.[5]
A tradição na Escritura
A Escritura fala de uma espécie de tradição. O sentido de “tradição” que aparece na Escritura não é o sentido mais usual do termo, o qual causou tanta discordância na história da igreja. Nos escritos bíblicos o termo tradição tem como correspondente principal no grego παράδοσις (paradosis), que pode ser traduzido como “ensino”, “transmissão” ou “entrega”. O termo, de forma genérica, denota algo que é entregue.[6]
Há dos tipos de tradição mencionadas no Novo Testamento: uma aprovada e outra reprovada. Entre a tradição reprovada estava a “tradição dos anciãos”, o conjunto crescente de lei oral dos judeus que, segundo o próprio Jesus, estava em oposição à Palavra de Deus; e a “tradição dos homens”, um gnosticismo incipiente que intentava transformar o cristianismo numa religião bem diferente da encontrada na mensagem apostólica.[7]
A “tradição dos anciãos” é exemplificada no texto de Mateus 15. Os anciãos acusaram Jesus e seus discípulos de transgredir as suas tradições, que ordenava que se purificasse as mãos na hora de comer (v. 1-2; cf. Mc 7.3 ). Jesus era um Rabi, e por isso, a conduta de seus discípulos era de sua responsabilidade. Por isso, para os fariseus e escribas, Jesus deveria obrigar seus discípulos a obedecer a tradição de lavar as mãos, visto que para eles a tradição era autoritativa.[8] Contudo, Jesus põe a tradição de volta ao seu devido lugar ao demonstrar que há uma relação de prioridade entre os mandamentos e a tradição. A autoridade dos mandamentos (isto é, a Escritura) deriva “de Deus”, enquanto a tradição derivava de homens (v. 3; cf. Mc 7.5, 13 ). Os fariseus inclusive descumpriam um mandamento de Deus, registrado na Escritura por causa de suas tradições humanas. Jesus não está, segundo France, rejeitando toda e qualquer tradição, mas fazendo um ajuste de prioridade, pois “uma tradição que presume anular a autoridade do mandamento de Deus não merece respeito”.[9]
O termo tradição também é usado na Escritura para se referir ao ensino entregue por homens dissidentes da igreja (Cl 2.8 ). Em Colossenses 2.8 o termo “tradição” se refere ao conhecimento obtido por meio da filosofia humana, que dava embasamento aos falsos mestres da época. Segundo Keener, os judeus da diáspora louvavam a “filosofia”; e alguns de seus pensadores, como Filo e Josefo, até a combinavam com o judaísmo da época. É possível que alguns cristãos daquele tempo também recebessem e até se interessassem pelas ideias morais dos filósofos gregos. Contudo, muito embora Paulo tenha utilizado uma linguagem filosófica em algumas de suas cartas, a filosofia não era a sua fonte de conhecimento. A única fonte de conhecimento inequívoca e inerrante é a revelação de Deus em Cristo (Cl 2.2-3, 6 ).[10]
Há, em contraste entre essa tradição reprovada na Escritura, e a tradição que é aprovada.Paulo frequentemente se refere à sua pregação e ensino com o mesmo termo usado para se referir às tradições orais judaicas: entregar (paradidonai) e receber (paralambanein) tradição (paradosis).[11] Enquanto Jesus contrastou as tradições judaicas com a palavra de Deus (Mt 15:6 ) e proibiu seus discípulos de imitar os rabinos (Mt 23:8-10 ), Paulo louva os Coríntios a manterem as tradições que ele lhes entregou (1Co 11:2 ), exorta os tessalonicenses a manter as tradições que lhes foram ensinadas (2Ts 2:15 ) e a evitar aqueles que ignoraram a tradição que haviam recebido dele (2Ts 3:6 ). Segundo Morris, o termo destaca a “natureza derivada” desses ensinamentos. O que Paulo ensina não vem dele mesmo, mas fora transmitido a ele, e ele agora transmite a seus leitores[12]
A tradição aprovada, a que Paulo se refere é a própria mensagem do evangelho. Veja o que diz Ladd:
Os coríntios receberam o evangelho que Paulo pregou a eles (1Co 15: 1). O evangelho que os gálatas receberam é normativo; não pode haver outro evangelho (Gl 1: 9). Os tessalonicenses receberam como a palavra de Deus a mensagem que ouviram de Paulo, nelas a palavra do próprio Deus (1Ts 2:13 ). Em todas essas passagens, o termo reflete a entrega e recebimento de uma tradição oral com um conteúdo fixo. Essa tradição personificava o kerygma apostólico, o evangelho. Paulo entregou aos coríntios o evangelho que ele também recebeu (1Co 15:1-5 ). Os versos 3b-5 incorporam uma peça primitiva de kerygma pré-paulino que Paulo recebeu como tradição daqueles que eram apóstolos antes dele.[13]
George Elton Ladd
A tradição recebida e transmitida por Paulo contém também um relato de parte da vida de Jesus: a instituição da Ceia. Paulo recebeu “do Senhor” o relato que ele entregou aos coríntios da instituição da Ceia (1 Co 11.23 ). E tem sua origem em Jesus, e contém tanto as boas novas da salvação quanto um relato da vida de Jesus.[14]
[1] Cunha, Antônio Geraldo da, Dicionário Etimológico Da Língua Portuguesa . Rio de Janeiro, RJ, Brasil: Lexikon, 2011.
[2] Houaiss, Antônio; Villar, Mauro; Franco, Francisco Manoel de Mello, Dicionário Houaiss Da Língua Portuguesa, 1a reimpressão, com alterações . Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p. 1863.
[3] Packer, J. I., “O Conforto Do Conservadorismo,” In: Religião De Poder, ed. Michael S. Horton . São Paulo: Cultura Cristã, 1998, p.234.
[4] Packer, “O conforto do conservadorismo,” p.234.
[5] Packer, “O conforto do conservadorismo,” p.233.
[6] Arndt, William; Danker, Frederick W; Bauer, Walter, A Greek-English Lexicon of the New Testament and Other Early Christian Literature, 3rd ed. . Chicago: University of Chicago Press, 2000, p. 763.
[7] Bruce, F. F. and Rupp, E. G., eds., Scripture and Tradition in the New Testament . Manchester University Press, 1968, Disponível em: <https://theologicalstudies.org.uk/pdf/ffb/scripture-and-tradition-in-the-nt_bruce.pdf>, Acessado em: 05/09/2019, p. 69.
[8] France, R. T., Matthew: An Introduction and Commentary, Tyndale New Testament Commentaries 1 . InterVarsity Press, 1985, pp. 244–45.
[9] France, Matthew: an introduction and commentary, p. 245.
[10] Keener, Craig S., The IVP Bible Background Commentary: New Testament . Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1993.
[11] Ladd, G. E., “Revelation and Tradition in Paul,” In: Apostolic History and the Gospel: Biblical and Historical Essays Presented to F. F. Bruce on His 60th Birthday, ed. F. F. Bruce, W. W. Gasque and Ralph P. Martin . Exeter: The Paternoster Press, 1970, Acessado em: 05/09/2019, Disponível em: <https://biblicalstudies.org.uk/pdf/ahg/revelation_ladd.pdf>, pp. 224–25.
[12] Morris, Leon, 1 Corinthians: An Introduction and Commentary, Tyndale New Testament Commentaries 7 . Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1985, p. 149.
[13] Ladd, “Revelation and Tradition in Paul,” p.225.
[14] Ladd, “Revelation and Tradition in Paul,” pp. 225–26.
Imagem: Nathan Dumlao