O termo “tradição” adquiriu muitos sentidos ao longo da história. Essa é uma palavra que sem definição pode trazer muita confusão. Segundo Lane, tradição pode significar: a) a soma total da herança cristã, sendo a Escritura apenas um item dessa tradição; b) o processo de tradição, o ato de entregar essa herança, o que é chamado de tradição ativa; c) escritos e práticas não derivadas da Escritura, herdadas do passado, o que é chamado de tradição suplementar.[1]
Godfrey também analisa diversas nuances do termo “tradição”:
Tradição é uma palavra que pode ser usada com vários sentidos. Ela pode referir-se a uma certa escola de compreensão das Escrituras, tais como a tradição luterana. Pode referir-se a tradições — provavelmente dos apóstolos — que não se encontram na Bíblia. Ela pode referir-se a tradições desenvolvidas ao longo da história eclesiástica, as quais não são nitidamente de origem antiga. Geralmente, entre os antigos pais da igreja, a palavra “tradição” refere-se à interpretação padrão da Bíblia entre eles.[2]
Roberto Godfrey
Aqui, consideramos quatro sentidos de tradição: a) a tradição oral que deu origem à Escritura Sagrada; b) a tradição como o consenso cristão, expresso pelos primeiros credos, concílios e escritos da patrística; c) a tradição suplementar, não-escriturística e que sustenta práticas e doutrinas não-escriturísticas; d) tradição como desenvolvimento da teologia e da prática das igrejas e denominações ao longo da história. O segundo, terceiro e quarto sentido de tradição são os mais relevantes para os objetivos deste trabalho.
Tradição oral e Escritura
A tradição, no primeiro sentido, é o material do Novo testamento num estágio oral e inicial. Na área de estudos do Novo Testamento esse é sentido mais usual. Essa tradição, que é o estágio oral e inicial dos materiais do Novo Testamento, inclui as palavras de Cristo, a proclamação apostólica do evangelho e o ensino que se seguiu dessa mensagem transmitida pelos apóstolos a seus convertidos. O próprio Novo Testamento é um registro escrito da tradição oral.[3] Como resume Costa:
A tradição oral […] consistia basicamente no que Jesus Cristo, os apóstolos e outros servos de Deus ensinavam através de sermões, orientações e comportamento (1Co 11:2, 23-25; Gl 1:14 ; 2Ts 2:15 ; 3:6/Rm 6:17 ; 16:17; 1Co 15:1-11 ; Fp 4:9 ; 1Ts 2:9, 13; 4:11-12). Nesses textos, evidencia-se que a “tradição” recebida e ensinada amparava-se numa certeza quanto à sua origem divina. Portanto, as “tradições” mencionadas por Paulo distinguem- se das inventadas e transmitidas pelos homens, as quais são recriminadas por Cristo, visto que esses ensinamentos anulavam a Palavra de Deus (cf. Mt 15:2-3,6 ; Mc 7:3,5,8-9,13 ). A paradosis é rejeitada todas as vezes que entra em choque com a Palavra de Deus.[4]
Hermisten Maia Pereira da Costa
Essa tradição é composta de diversas correntes: tradições da vida de Jesus (1Co 11:23 ); um resumo da mensagem cristã, expresso como uma fórmula de fé, e que une fatos da vida de Jesus e sua interpretação teológica (1 Co 15.3 ); e regras para a prática da conduta cristã (1Co 11.2 ; 2Ts 3.6 ). Ela tem origem com o próprio Jesus (1Co 11.23 ) e com as testemunhas oculares apostólicas (1Co 15.1,8 ). A função da tradição oral não é tão somente propagar-se, mas também a preservação do evangelho da corrupção das tradições humanas (Cl 2.8 ), e da distorção dos falsos mestres (2Co 11:3-5 ). Ela não pode ser mudada, e deveria ser defendida de qualquer mensagem divergente (Gl 1.8-9 ). Ao mesmo tempo, ela foi acrescida pelo Espírito, por meio dos apóstolos e profetas.[5]O ensino apostólico faz parte dessa tradição. Jesus ordenou que os apóstolos transmitissem o seu ensino, “ensinando-os a observar tudo o que eu lhes ordenei” (Mt 28,20). Até hoje, o critério mais seguro de uma igreja apostólica é sua adesão ao ensino apostólico.[6]
O material que deu origem à Escritura foi primeiro proclamado oralmente, como uma palavra falada. Essa palavra falada, antes da formação do cânon, tinha autoridade na igreja primitiva.[7] Alguns Pais da Igreja, como Papias, apelavam à tradição oral. Ele inclusive a valorizava mais que a escritos, pois as via como “uma voz viva e duradoura’. Contudo, por volta do ano 150 d.C., a tradição oral já estava falida. Ela consistia num conjunto de lendas misturadas a informações confiáveis.[8] Nesse tempo, apenas os gnósticos permaneceram apelando à tradição oral. Irineu dizia, de maneira positiva, que Policarpo se sentara aos pés do apóstolo João. Mas no tempo de Irineu já não havia ninguém que tinha vivido na era apostólica. Havia apenas os mestres gnósticos, que afirmavam ter uma tradição oral secreta dos apóstolos; o que foi rejeitado pela igreja católica.[9]
O problema da tradição oral é que ela é mais sujeita a mudanças e corrupção que a escrita. Enquanto manuscritos podem ser comparados e avaliados, de modo que se pode optar pelo texto mais próximo da fonte original, isso não pode ser feito com a comunicação verbal, pois falta-lhe um ponto de referência. A Palavra escrita supriu essa necessidade de um ponto de referência. Ainda que a tradição verbal da era apostólica tenha o selo da antiguidade e seja revestida de toda a autoridade, esta não pode ser conclusiva, pois lhe falta a mesma garantia da comunicação escrita. Isso é afirmado pelo apóstolo Pedro (2Pe 1.19-21 ). O que foi falado pelos profetas inspirados por Deus e tornado Escritura pode ser reconhecido como autoridade real ao longo do tempo. Ainda que a comunicação verbal seja necessária, e seja o meio primário de trazer homens e mulheres à fé, sua autoridade deve ser validada pelo texto da Escritura.
Deus revelou sua palavra verbalmente e temporariamente pelos profetas e apóstolos, e depois ela foi registrada na Escritura Sagrada. O que torna a comunicação verbal da era pós-apostólica poderosa é o fato de que ela se firmava na palavra da Escritura: “a fé vem pela pregação, e a pregação, pela palavra de Cristo.” (Rm 10.17 ).[10]
Tradição como consenso cristão
O segundo sentido de tradição é a reflexão cristã expressa no consenso dos pais da igreja. Essa é a tradição que era reconhecida e valorizada pela igreja primitiva. Ela foi responsável pela composição e reconhecimento do cânon. Essa tradição tinha autoridade, mas não era uma autoridade oficial, e estava em formação constante.[11]
A igreja primitiva entendia que o ensino da Escritura e da tradição, bem como da igreja, eram, em substância, o mesmo. A tradição dos pais era autoritativa, pois remonta à tradição dos apóstolos, e seu conteúdo era reconhecido como sendo o mesmo das Escrituras. Nesse sentido, a tradição não acrescenta nada à Escritura, mas tão somente ensina a sua interpretação correta. A tradição como consenso cristão seria encontrada nas igrejas fundadas pelos apóstolos, onde seus sucessores ainda ensinassem. A igreja era vista como a guardiã da Escritura e da tradição, e é ela quem teria a autêntica mensagem apostólica.
Essa visão pode ser encontrada nos escritos de Irineu e Tertuliano. Ambos rejeitavam a reivindicação gnóstica de uma tradição secreta que suplementa as Escrituras.[12] A heresia era vista como sendo oposta ao ensino da igreja; e este coincidia com o ensino apostólico.[13] Irineu disse que a verdadeira tradição é um resumo dos escritos bíblicos dos apóstolos: “A igreja, embora dispersa pelo mundo todo, até os confins da terra, recebeu dos apóstolos e dos discípulos essa fé”.[14] Em suma, a tradição como consenso cristão é o ensino da igreja que coincide com a compreensão fundamental do cânon.[15]
Tradição suplementar
O terceiro sentido de tradição, encontrado na igreja romana, é o que pode ser chamado de tradição suplementar. A tradição passa a ter um papel autoritativo e oficial na vida da igreja, com a mesma autoridade da Escritura.[16] Segundo essa visão, a tradição não apresenta apenas o conteúdo da Escritura num formato diferente, mas também a suplementa.[17]
A tradição, nesse sentido, deixa de ser um resumo dos escritos bíblicos dos apóstolos, e passa a abarcar também tudo aquilo que é visto como sendo a mensagem apostólica não-escrita. Nem tudo que a igreja romana ensinava era encontrado na Escritura, e por isso a Escritura foi tomada como insuficiente. A tradição deveria complementá-la. A suposição era a de que se algo era ensinado pela igreja, então deve ser algo que veio dos apóstolos. Para tudo que a igreja fazia, tentava-se encontrar uma base apostólica. Isso tornou a igreja, por si só, uma fonte de doutrina.[18]
A Tradição como teologia e prática das comunidades de fé
O quarto sentido de tradição é o desenvolvimento da teologia e a prática acumulada das comunidades de fé. Com o cisma de 1504 e a Reforma, a igreja se dividiu em diversas correntes, cada qual com seu desenvolvimento teológico. Daí, há a tradição evangélica, pentecostal, batista etc. Algumas dessas tradições são oficiais, registradas em documentos, credos e confissões, e outras são mais implícitas.[19] Esse é o sentido de tradição conforme definido por Osborne:
Em essência, a tradição se refere ao conjunto de crenças e práticas que se desenvolveram ao longo da história de um movimento e que orienta e modela a forma atual de um grupo.[20]
Grant Osborne
Essa tradição comunitária não se compõe apenas de desenvolvimento teológico, mas também um desenvolvimento litúrgico e de prática. Aqui, inclui-se a cultura da igreja, a vida da igreja.[21]
Tradição não é coisa apenas de católico romano. Toda denominação protestante ou evangélica também tem a sua própria “tradição”, que muitas vezes pode ser tão “imposta” quanto o dogma católico romano.[22] Segundo Packer:
Se você acha que os evangélicos estão imunes a isso, pense de novo. Desenvolvemos nosso próprio linguajar (“evangeliquês”, como se diz), estilos musicais, livros e fitas favoritos e até mesmo criamos tradições especiais sobre a forma de transmitir a mensagem cristã. Alguns que desprezam a tradição não considerariam um dia completo ou urna reunião evangelística na igreja sem uma “apelo para decisão”, no entanto essa foi uma tradição inventada por Charles Finney no meio do século passado. A questão não é se temos tradições, mas se nossas tradições estão em conflito com o único padrão absoluto nessas questões: as Escrituras Sagradas.[23]
J. I. Packer
Em suma, a tradição é tanto o processo de transmitir quanto o conteúdo que é transmitido e recebido, que pode ser um conteúdo oral, escrito ou prático. “Tradição” quer dizer transmitir de uma geração para a seguinte um conjunto de crenças e uma forma de vida.[24] A igreja, ao longo da história, desenvolveu a sua tradição, que pode ter vários sentidos: a) o consenso da doutrina cristã, visto na patrística e nos primeiros credos; b) tradição suplementar não-escriturística, que complementaria as Escrituras; e c) desenvolvimento teológico e da prática das comunidades de fé.
A tradição verdadeiramente cristã, segundo Vanhoozer, é o testemunho do evangelho por parte da igreja. Ele diz:
A substância da tradição — o que é transmitido e passado adiante — é essencialmente testemunho. O conteúdo dos quatro Evangelhos é o testemunho apostólico da identidade, ensino, vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo. As cartas paulinas são testemunho também, mas primordialmente do que Deus estava fazendo em Cristo e da sua importância universal. A Regra de Fé e as afirmações do credo são formas de testemunho pós-apostólico que sintetizam a história da salvação e o testemunho apostólico primitivo.[25]
Kevin J. Vanhoozer
Esse testemunho é revestido de autoridade à medida em que se coaduna com a mensagem apostólica, autorizada por Cristo. A tradição meramente humana, que não está de acordo com a mensagem da Escritura, deve ser rejeitada, porque falta a ela “a autorização divina”. Contudo, isso não implica na rejeição de qualquer tradição. A tradição que importa é aquela que fala sobre o “significado e as implicações do discurso apostólico”. A tradição é parte do plano de Deus para a edificação da igreja, pois “o Espírito a usa para guiar a igreja toda a toda a verdade”.[26]
[1] Lane, A. N. S., “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” Vox Evangelica 9 (1975): p. 37, Acessado em: 05/09/2019, Disponível em: <https://biblicalstudies.org.uk/pdf/vox/vol09/scripture_lane.pdf>.
[2] Godfrey, Robert, “O Que Entendemos Por Sola Scriptura?,” In: Bickel, Sola Scriptura, p.23.
[3] Fee, Gordon D., Gospel and Spirit: Issues in New Testament Hermeneutics . Peabody Mass.: Hendrickson Publishers, 1991, p. 67.
[4] Costa, Hermisten Maia Pereira da, Fundamentos Da Teologia Reformada . São Paulo: Mundo Cristão, 2007, p. 42.
[5] Ladd, “Revelation and Tradition in Paul,” p.228.
[6] Bruce, F. F., “The Church of Jerusalem”, Disponível em: <https://biblicalstudies.org.uk/pdf/cbrfj/04_05.pdf>., Acessado em: 05/09/2019.
[7] Armstrong, John H., “A Autoridade Da Escritura,” In: Bickel, Sola Scriptura, p.97.
[8] Lane, “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” p. 39.
[9] Lane, “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” p. 39.
[10] Armstrong, John H., “A Autoridade Da Escritura,” In: Bickel, Sola Scriptura, p.97.
[11] Fee, Gospel and Spirit, pp. 67–68.
[12] Lane, “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” p. 39.
[13] Lane, “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” p. 38.
[14] Vanhoozer, Kevin J., Autoridade Bíblica Pós-Reforma: Resgatando Os Solas Segundo a Essência Do Cristianismo Protestante Puro E Simples . São Paulo: Vida Nova, 2017, p. 161.
[15] Vanhoozer, Autoridade bíblica pós-reforma, p. 161.
[16] Fee, Gospel and Spirit, p. 68.
[17] Lane, “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” p. 40.
[18] Lane, “Scripture, Tradition and Church: An Historical Survey,” pp. 41–42.
[19] Fee, Gospel and Spirit, p. 68.
[20] Osborne, Grant R., A Espiral Hermenêutica: Uma Nova Abordagem À Interpretação Bíblica . São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 487.
[21] Vanhoozer, Autoridade bíblica pós-reforma, p. 164.
[22] Osborne, A espiral hermenêutica, p. 487.
[23] Packer, “O conforto do conservadorismo,” p.234.
[24] Vanhoozer, Autoridade bíblica pós-reforma, p. 183.
[25] Vanhoozer, Autoridade bíblica pós-reforma, p. 186.
[26] Vanhoozer, Autoridade bíblica pós-reforma, p. 183.