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Moana: Ouvindo o chamado de uma história antiga

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Artigo escrito para o site Evangelho em Questão, do qual agora sou colaborador. Acesse o site!

Moana é uma animação da Disney, que conta a história de uma garota polinésia que deve viajar para salvar o povo de sua ilha. Ela é filha do chefe de uma tribo Motunui, e deve herdar de seu pai a liderança da ilha. Só que ela foi escolhida pelo oceano para devolver uma relíquia mística a uma deusa e, assim, restaurar a ordem das coisas.


Ao ver a história por cima, é fácil pressupor que se trata de mais uma narrativa que promove o individualismo expressivo, o que tem sido a pauta de tantos filmes da Disney. Inclusive, essa é a tese de Jaquelle Crowe em seu artigo para o The Gospel Coalition, que alerta para a presença de algum “panteísmo misturado com politeísmo” no filme, e então diz:


O filme […] ensina às crianças que elas devem olhar para dentro de si mesmas para encontrarem sua verdadeira identidade e propósito, mesmo se as pessoas lhes disserem que não, mesmo que estejam ‘quebrando as regras’ […]¹


Muito embora o individualismo expressivo seja algo presente em nossa cultura, e especialmente em filmes da Disney, eu creio que o longa Moana, na verdade, trata de algo a mais. Ele diz respeito a um tipo de conflito que todos enfrentam em algum momento de sua vida, e sobre o qual a Bíblia tem muito a dizer.


O filme começa com Tala, avó de Moana, contando uma lenda que serve como metanarrativa de todo o longa. A lenda diz que Te Fiti, uma deusa que havia criado toda a vida na Terra, teve seu coração roubado pelo semideus Maui. Isso despertou o demônio de lava Te Ka, que derrotou Maui e o fez perder seu anzol mágico e o coração de Te Fiti. Desde então, a morte se espalhou e alcançou o mundo inteiro. Mas há esperança: um herói viria, recuperaria o coração de Te Fiti e restauraria a ordem natural das coisas. Essa lenda é uma metanarrativa porque o modo como cada personagem responde a tal lenda é o que dita as suas ações ao longo da história. As crianças ficam aterrorizadas, Moana é inspirada, enquanto Tui, o chefe da tribo, responde com ceticismo.


Moana é filha do Chefe Tui e seu destino é suceder o pai na liderança de seu povo. Contudo, ela sente um desejo de navegar no mar e de ir para além do recife, o que é proibido expressamente pelo seu pai. Entretanto, quando a morte chega à ilha e ameaça prejudicar a sobrevivência da tribo que ali vive, Moana se vê no dilema de cumprir as ordens de seu pai ou seguir o chamado do além-mar.


O dilema de Moana é, de fato, um dilema. Como Bilbo, em “O Hobbit”, ela tem de decidir se permanece em sua ilha-paraíso ou se parte numa aventura para o desconhecido. Na canção “How Far I’ll Go” ela apresenta o seu desejo de ser capaz de habitar na ilha onde “cada um tem seu papel”. Mas ela sente em seu coração que há algo errado com o seu mundo. E, de fato, havia algo de profundamente errado com aquele mundo. Um problema que vinha dos tempos mais remotos, e que tinha de ser resolvido, para que o mundo inteiro não perecesse. Tal como Frodo, que precisava sair do Condado, ou então o Condado pereceria; Moana deve deixar o seu povo por algum tempo a fim de salvá-lo.


Veja, não se trata de um simples dilema entre obediência ou transgressão. Moana buscou a aprovação de seu pai tanto quanto foi possível. Tratava-se, na verdade, de um dilema entre seguir o estilo de vida de seus pais, que considera tão somente o “aqui e agora” enquanto teme o que pode estar além, ou seguir o chamado de uma história bem antiga. E não era um simples “chamado do coração”, típico do individualismo expressivo (em Frozen, por exemplo), mas de um instinto que vinha dos tempos mais remotos, e com o qual todo indivíduo é confrontado em algum momento (até mesmo Tui, em sua juventude, quis ser aventureiro). E, no fim das contas, ao seguir o seu chamado, Moana foi capaz de cumprir o seu papel de sucessora da ilha de modo mais eficaz. Foi a “transgressão” de Moana que a fez ser uma melhor líder para a sua tribo.


Quantos cristãos já não enfrentaram o dilema de seguir as expectativas de seus pares e familiares, com todo o conforto que isso traz, ou seguir a Cristo? Podemos pensar nos cristãos perseguidos por seus pais por conta de sua fé. Ou mesmo em cristãos que têm o desejo de seguir uma vocação ministerial, mas são tolhidos por expectativas familiares. Ou mesmo o mais comum: pais que sobrecarregam seus filhos adolescentes com um peso excessivo de expectativas profissionais e acadêmicas, ensinando-os consciente ou inconscientemente que a carreira é o que mais importa – acima inclusive de família e religião. Como um pastor que com frequência lida com adolescentes, eu devo dizer que isso é mais comum do que eu gostaria.


Veja, o quinto mandamento ainda está em vigor. Os cristãos devem honrar as autoridades constituídas, incluindo pai e mãe. Contudo, o que Moana retrata de modo belo é a passagem de uma garota adolescente para a vida adulta, onde ela toma as próprias decisões e comete os seus próprios erros. No caso, a garota decide, a despeito da reprovação de seu pai, envolver-se com uma história mais antiga, ao invés de focar na vida presente. Não seria isto uma espécie de conversão? Não é um simples desejo egoísta do coração, mas um chamado “místico” de uma tradição mais antiga, anterior até mesmo a seus pais.


Em Mateus 8.21-22, Mateus 8.21-22, temos que um jovem disse a Jesus: “permite-me ir primeiro sepultar o meu pai”. Ao que Jesus responde: “Segue-me, e deixa aos mortos o sepultar os seus próprios mortos”. A resposta de Jesus pode causar um certo estranhamento, se ignorarmos que o pedido do jovem não era para participar de um simples funeral de algumas horas, mas de um rito tradicional que poderia durar muitos dias, meses até. Havia a preparação do corpo, com perfumação e tudo o mais. Havia um período de luto que poderia durar três dias ou mais. Havia choradeiras profissionais, que pranteavam a morte. Era uma cerimônia bem dramática e exibicionista. E depois de tudo isso, havia ainda um segundo enterro, que ocorria depois do espaço de um ano, quando os ossos eram enterrados numa caixa especial na parede do túmulo.


O pedido do discípulo era legítimo: cuidar do enterro do pai é uma obrigação da Torá. Havia precedente para isso, inclusive (1Rs 19.19-211Rs 19.19-21). Contudo, seguir a Jesus era ainda mais urgente. Jesus afirma a sua precedência até mesmo sobre as obrigações familiares (Mt 10.35-39Mt 10.35-39; 12.46-50; 19.29). Se a consagração de um nazireu ou de um sacerdote poderia lhes impedir de participar do funeral de seus pais (Nm 6.6-7Nm 6.6-7; Lv 21.11Lv 21.11), quanto mais a demanda de Jesus! Seguir a Jesus é mais importante que cumprir as expectativas daqueles que são tão caros a nós. Aliás, ao seguir a Jesus, cedo ou tarde nós frustraremos as expectativas da sociedade. Nós não nos encaixaremos muito bem. Mas é justamente isso que permite ao cristão ser sal e luz do mundo: o fato dele ser diferente do mundo.


Por fim, não julguemos tanto a Moana. O dilema que ela enfrentou é, no fundo, o dilema de todo cristão: encaixar-se nos papéis que nos foram dados ou seguir o antigo chamado do além-mar? No fim, ela encontrou, como Agostinho, a resposta dentro de si.


O que isso tem a dizer aos cristãos? Creio que há duas coisas aqui. Em primeiro lugar, não sejamos tão superficiais na análise das histórias. Tolkien já dizia que todo mito reflete o “mito verdadeiro”. É claro que Moana não é um filme perfeito. Mas podemos ir além de um criticismo ingênuo e buscar na história o ponto em que ela reflete, ainda que distorcido, o desejo do coração humano por uma resolução para o problema fundamental. Em segundo lugar, podemos fazer uso de tais histórias numa ponte para o evangelismo. O dilema de pertencer entre o “aqui e agora” ou de fazer parte de uma história que é maior que nós é algo latente no coração humano. E a verdadeira história, que de fato pode responder a tal anseio, é o evangelho. Nós não somos nem precisamos ser o herói que resolve o problema e vence a morte: Jesus é. Mas podemos fazer parte dessa história, quebrando expectativas, servindo ao Rei e, desse modo, promover o bem no mundo.


¹ CROWE, Jaquelle. Como Jovens Como Eu Aprendem o Individualismo Expressivo. Disponível em: https://coalizaopeloevangelho.org/article/como-jovens-como-eu-aprendem-o-individualismo-expressivo. Acesso em: 16 jun. 2020.