Pular para o conteúdo

A preservação da vida e o medo da morte

  • Artigos

O que é mais importante: preservar vidas ou não temer a morte? O que levou as igrejas a interromper os cultos públicos e aderir à quarentena foi o cuidado com a vida. Mas agora, quando muitas igrejas reabrem as suas portas, há quem argumente o retorno dizendo que não devemos “temer a morte”. Não é minha intenção aqui discutir se devemos retornar ou não, mas sim a (aparente) tensão entre esses dois imperativos bíblicos.

O cuidado com a vida é algo importante. O cuidado com a vida é uma implicação do sexto mandamento. Na pergunta 135 do Catecismo Maior de Westminster, onde fala a respeito do mandamento “Não matarás”, o catecismo traz como uma implicação do mandamento o seguinte:

“O sexto mandamento exige os deveres de estudar criteriosamente e esforçar-se licitamente para em tudo preservar a nossa vida e a dos outros [… ] evitar todas as ocasiões, tentações e práticas que tendem a tirar injustamente a vida de alguém.”

Catecismo Maior de Westminster, 135

E na pergunta 136, o catecismo diz que o mandamento proíbe:

“[…] a negligência ou a retirada dos meios lícitos e necessários de preservação da vida […]”.

Catecismo Maior de Westminster, 136

Ou seja, “não matarás” implica que devemos ter todo o cuidado a fim de preservar a vida do próximo.

Mas note que o mesmo Catecismo, na mesma pergunta, também diz que esse mandamento proíbe a “preocupação exagerada”. Ou seja, é proibida a ansiedade. Ter ansiedade para com a própria vida é uma quebra do sexto mandamento. Crente não deve ter medo da morte!

Essas duas preocupações estão presentes nas discussões da igreja atual a respeito do retorno aos cultos públicos. E, eu sei, alguns enfatizam uma coisa mais que a outra. As duas preocupações são legítimas, mas não se deve exagerar numa a despeito da outra.

A preservação da vida

Dito isso, veja o que diz, por exemplo, o texto de Deuteronômio 22.8Deuteronômio 22.8:

8 Quando edificares uma casa nova, far-lhe-ás, no terraço, um parapeito, para que nela não ponhas culpa de sangue, se alguém de algum modo cair dela.

Deuteronômio 22.8 Deuteronômio 22.8 RA

Em Deuteronômio temos uma expansão dos Dez Mandamentos, que são o resumo da Lei Moral. Aqui temos a Lei exposta de um modo mais detalhado: com casos que ajudariam os juízes israelitas a julgar casos específicos. O preceito específico aqui exposto é uma implicação do sexto mandamento. O que está acontecendo aqui?

Naquele tempo, as casas mais bem construídas costumavam ter um terraço. O quarto principal costumava ficar no topo da casa, e ele tinha uma saída que dava para o terraço. O quarto era acima porque no térreo era onde você teria todo tipo de coisa, inclusive animais. Foi num terraço como esse, por exemplo, que Davi viu Bate-Seba tomando banho. Enfim, o terraço era muito usado pelas famílias para todo tipo de coisa. Em dias quentes, se dormia no terraço. Em dias festivos, fazia-se festa no terraço. Então o israelita tinha churrasco na laje muito antes dos brasileiros!

Por isso, era muito importante houvesse um parapeito no terraço, a fim de servir de muro de segurança. Só que esses parapeitos aumentariam o custo da obra, e por isso fazia-se necessário que isso fosse incluído na Lei. Se ocorresse um acidente, e alguém caísse do terraço, e não houvesse um parapeito ali, o dono da casa seria responsabilizado, como num homicídio culposo. Caso houvesse um parapeito, daí o dono não seria responsabilizado. [1]

Veja, o princípio aqui para nós é claro. A vida é importante. Os cuidados para se preservar a vida são importantes. E, além disso, a negligência em prover tais cuidados é uma quebra do sexto mandamento. Quem negligência tal cuidado pode ser responsabilizado pela morte de alguém.

O medo da morte

Mas veja também Mateus 6.25-34Mateus 6.25-34:

25 Por isso, vos digo: não andeis ansiosos pela vossa vida, quanto ao que haveis de comer ou beber; nem pelo vosso corpo, quanto ao que haveis de vestir. Não é a vida mais do que o alimento, e o corpo, mais do que as vestes? 26 Observai as aves do céu: não semeiam, não colhem, nem ajuntam em celeiros; contudo, vosso Pai celeste as sustenta. Porventura, não valeis vós muito mais do que as aves? 27 Qual de vós, por ansioso que esteja, pode acrescentar um côvado ao curso da sua vida? 28 E por que andais ansiosos quanto ao vestuário? Considerai como crescem os lírios do campo: eles não trabalham, nem fiam. 29 Eu, contudo, vos afirmo que nem Salomão, em toda a sua glória, se vestiu como qualquer deles. 30 Ora, se Deus veste assim a erva do campo, que hoje existe e amanhã é lançada no forno, quanto mais a vós outros, homens de pequena fé? 31 Portanto, não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? Ou: Com que nos vestiremos? 32 Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; 33 buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas. 34 Portanto, não vos inquieteis com o dia de amanhã, pois o amanhã trará os seus cuidados; basta ao dia o seu próprio mal.

Mateus 6.25–34 Mateus 6.25–34 RA

Veja, nesse texto Jesus condena a ansiedade. E não pretendo fazer uma exposição longa aqui, mas basta dizer que ele fala de todo tipo de ansiedade:

  1. A ansiedade quanto ao sustento, “pelo que comer ou beber” (v. 25-26)
  2. A ansiedade quanto por uma vida mais longa, “não podeis acrescentar um côvado ao curso de sua vida” (v. 27)
  3. A ansiedade quanto à proteção física, “o que vestir” (v. 28-30) [2]

Ele fala também da razão da ansiedade: a ansiedade é fruto da incredulidade. Os que não creem em Deus têm toda a razão em terem medo da morte. Mas nós, que cremos em Deus, devemos saber que Ele está no controle de todas as coisas, e que a morte, para nós, não será uma viagem ruim. Então, devemos buscar primeiro o Reino, e deixar com ele a administração das circunstâncias da vida.

Então, veja, duas coisas aqui. A mesma Bíblia que diz que devemos preservar a vida de outros – e que podemos ser responsabilizados pela morte de alguém, caso negligenciemos isso – também diz que não devemos estar ansiosos quanto à nossa própria vida. Os nossos cuidados não garantem que tudo vai dar certo. Veja, é bem possível que haja um parapeito no terraço, e ainda assim alguém caia de lá. Deus é quem tem o controle de todas as circunstâncias, você não. Contudo, devemos cumprir aquilo que nos é requerido.

O que fazer?

Tendo isso em vista, o que fazer? Bem, você deve avaliar o que está em seu coração.

  1. Você está ciente da importância da vida de nossos irmãos? Eles são criados à imagem de Deus e remidos por Cristo. Você levou isso em conta o suficiente? O seu desejo do retorno aos cultos é, de fato, um anseio para que Deus seja mais glorificado ou é um desejo egoísta?
  2. Você está ansioso? Você tem medo da morte? O que te motiva a querer adiar esse retorno é um cuidado para com a vida de outros ou uma preocupação excessiva para com a própria vida? Será que você não está colocando a sua própria vida acima da glória a Deus?

Bem, o princípio é o seguinte: você deve tomar os cuidados para preservar a vida de outros. Mas você não deve temer o fim da sua própria vida. Muitos, inclusive, se arriscarão para que o retorno aos cultos aconteça de um modo que preserve a vida de outros. Muitos de nós sairemos de nossas casas para servir à igreja.

E qual é o propósito da reabertura? O propósito não deve ser o cansaço de ficar em casa. Não deve ser a vontade de ver os irmãos, embora isso seja algo muito bom. Não, nós queremos o retorno dos cultos para que Deus seja mais glorificado no seu culto público. Mas para isso, devemos ter uma visão adequada das coisas. Devemos levar em conta toda a vontade de Deus. E assim, poderemos tomar decisões sábias, que glorifiquem a Deus.

[1] Peter C. Craigie, Deuteronômio, org. Cláudio Antônio Batista Marra, trad. Wadislau Martins Gomes, 1a edição, Comentários do Antigo Testamento (São Paulo, SP: Editora Cultura Cristã, 2013), 281.

[2] Itamir Neves e John Vernon McGee, Comentário Bíblico de Mateus: Através da Bíblia, org. Walkyria Freitas, Segunda edição, Série Através da Bíblia (São Paulo, SP: Rádio Trans Mundial, 2012), 71.