John Owen e a Tradição

A teologia reformada, especialmente na tradição puritana, é muitas vezes vista como um movimento rígido e sem diálogo com a tradição anterior. No entanto, uma análise mais aprofundada revela um cenário diferente. Owen, um dos mais influentes teólogos puritanos do século XVII, utilizou amplamente a tradição patrística e medieval em suas obras, demonstrando uma profunda reverência e continuidade com a ortodoxia reformada.

Neste artigo, exploraremos como Owen, e o protestantismo inglês de maneira mais ampla, buscou uma conexão contínua com a tradição cristã, incorporando-a de forma construtiva em sua teologia.

O contexto intelectual de Owen

John Owen (1616-1683) viveu em tempos turbulentos na Inglaterra, durante a Guerra Civil Inglesa, o governo de Oliver Cromwell e a restauração da monarquia. Ele era um defensor apaixonado da independência das igrejas locais e contribuiu significativamente para a teologia puritana.

Owen foi educado na Universidade de Oxford, onde se familiarizou profundamente com os métodos escolásticos e a teologia dos Pais da Igreja e dos teólogos medievais. Essa formação acadêmica deu a Owen uma base sólida para engajar-se criticamente com a tradição teológica da igreja, sempre mantendo a Bíblia como sua autoridade suprema.

A ortodoxia reformada, que moldou profundamente a teologia de Owen, era um movimento que procurava sistematizar as doutrinas da Reforma com precisão acadêmica. Esse movimento não via a tradição como uma ameaça, mas como uma aliada na luta contra heresias emergentes, como o arminianismo e o socinianismo, que ameaçavam diluir as doutrinas reformadas.

John Owen é um exemplo proeminente de um teólogo que incorporou a tradição patrística e medieval em sua obra, permanecendo firmemente dentro da ortodoxia reformada. Conforme Carl Trueman, Owen compartilhava das principais características da ortodoxia reformada, como uma alta visão das Escrituras, uma soteriologia baseada nos pactos divinos e uma ênfase na natureza trinitária da atividade de Deus (TRUEMAN, 2021).

Christopher Cleveland, em sua tese sobre o tomismo em John Owen, destaca como Owen utilizava conceitos de Tomás de Aquino para articular suas doutrinas sobre Deus, providência e união hipostática (CLEVELAND, 2013). Owen não apenas se defendia contra o arminianismo e o socinianismo, mas também utilizava a tradição teológica para construir suas próprias formulações doutrinárias.

A Influência da Tradição em Owen

Owen via a tradição como um auxílio hermenêutico e teológico, sem colocá-la no mesmo nível das Escrituras. Ele reconhecia a importância dos credos e confissões como limites para a reflexão teológica, demonstrando um conhecimento amplo de autores antigos, tanto protestantes quanto católicos.

Ele usava os primeiros credos para apoiar sua doutrina do Espírito Santo e sua relação com o Filho, mostrando uma clara continuidade com a tradição patrística (OWEN, Pneumatologia, pp. 158-60; cf. TRUEMAN, 2021). Ele também seguiu Agostinho em sua compreensão dos efeitos do pecado na mente humana (OWEN, Pneumatologia, pp. 137-38; cf. TRUEMAN, 2007). Essa conexão com a tradição patrística forneceu a Owen uma base sólida para suas próprias formulações teológicas.

A teologia medieval também desempenhou um papel significativo na obra de Owen. A distinção de Pedro Lombardo entre a eficácia e a suficiência da expiação foi crucial para Owen em sua defesa da doutrina da expiação limitada (OWEN, The Death of Death in the Death of Christ, pp. 295-96; cf. LOMBARDO, IV Libri Sententiarum, 3.20.3). Ele argumentava que a morte de Cristo era suficiente para todos, mas eficaz apenas para os eleitos. Essa distinção permitiu a Owen manter a universalidade do valor da expiação enquanto afirmava a particularidade de sua aplicação.

Owen incorporou conceitos tomistas, especialmente nas áreas da doutrina de Deus, providência e união hipostática. Em sua articulação da união hipostática, por exemplo, ele adotou a linguagem e as distinções de Aquino para articular como as duas naturezas coexistem em uma única pessoa (CLEVELAND, 2013). Embora Owen fosse crítico de certos aspectos do tomismo, ele reconhecia a profundidade e a clareza das formulações teológicas de Aquino.

Owen adotou uma metodologia escolástica, caracterizada por uma organização sistemática e lógica de seu material teológico (TRUEMAN, 2021). Essa abordagem metodológica refletia a influência da tradição medieval e permitiu que Owen articulasse suas doutrinas com precisão e profundidade. Ele utilizava a tradição não apenas para defender a fé reformada, mas para construir sobre ela, desenvolvendo novas ideias e respostas para questões contemporâneas.

Conclusão

John Owen representa um exemplo notável de como a tradição teológica pode ser utilizada de maneira construtiva na elaboração de doutrinas reformadas. Ao recorrer à patrística e à teologia medieval, Owen não apenas defendia a fé reformada, mas também desenvolvia novas respostas para os desafios de seu tempo. Seu uso da tradição mostra que os puritanos não eram teólogos isolados, mas participantes de um diálogo contínuo com a história da igreja. Eles viam na tradição uma fonte valiosa para a edificação e defesa da fé, demonstrando que a fidelidade à Escritura e o respeito pela tradição podem andar de mãos dadas.

Referências

  • Owen, John. Works of John Owen. T&T Clark, 1862.
  • Quantin, Jean-Louis. The Church of England and Christian Antiquity in the 17th Century. Oxford University Press, 2009.
  • Trueman, Carl R. The Claims for Truth: John Owen’s Trinitarian Theology. Reformation Heritage Books, 2012.
  • Trueman, Carl R. John Owen: Reformed Catholic, Renaissance Man. Ashgate, 2007.
  • Cleveland, Christopher H. Thomism in John Owen. Routledge, 2013.
  • Aquino, Tomás de. Summa Theologica. Benziger Bros., 1947.
  • Agostinho, Santo. Confissões. Paulus Editora, 1997.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *