O Puritanismo e a Tradição: Continuidades e Rupturas

O puritanismo inglês, frequentemente retratado como sectário e pouco ecumênico, na verdade tem uma relação complexa e rica com a tradição da Igreja. Em contraste com a visão popular que o opõe ao anglicanismo como uma via media entre o protestantismo e a igreja antiga, os puritanos desenvolveram uma abordagem distintiva em relação à tradição. Este artigo explora como figuras como William Perkins, Richard Baxter e outros puritanos utilizaram a tradição patrística e medieval em suas formulações teológicas, baseando-se em informações extraídas da monografia do usuário.

O Uso da Tradição no Puritanismo

Os puritanos se engajaram ativamente com a tradição, não apenas para defender suas posições, mas também para construir suas doutrinas. A afirmação de que o protestantismo inglês buscou continuidade com a tradição pode ser vista, por exemplo, na forma como William Perkins utilizou o Cânone de Vicente de Lérins. Este cânone afirmava que a doutrina correta é aquela crida por todos, em todo lugar e em todo tempo, e que em caso de dúvida, os cristãos deveriam confiar nos antigos decretos da igreja. Perkins cita este cânone para demonstrar que a Igreja de Roma se afastou do antigo depósito da fé, utilizando os testemunhos patrísticos para fundamentar suas argumentações teológicas (FORD, pp. 95-98; cf. Perkins, A Forged Catholicisme, Works, 2:487–88; Vincent of Lerins, Commonitory, 3.7)​​.

Richard Baxter é outro exemplo de um puritano que fez uso extensivo da tradição. Em sua obra Methodus Theologiae (1681), Baxter seguiu a linguagem e estrutura do escolasticismo, mostrando um profundo engajamento com a tradição teológica anterior. Baxter, ao contrário de muitos de seus contemporâneos, não via problema em admitir a possibilidade de alguém ser salvo pelo conhecimento do evangelho advindo da tradição, posição severamente criticada por outros ​​ (TRUEMAN, 2021; cf. Baxter, Methodus Theologiae).

A Influência da Ortodoxia Reformada

A teologia puritana não pode ser entendida completamente sem considerar a influência da ortodoxia reformada continental. Os puritanos ingleses, embora situados em um contexto distinto, estavam em constante diálogo com o movimento reformado internacional. Isso é evidente no envio de delegados ao Sínodo de Dort (1618-1619) e na adoção de métodos e terminologias escolásticas em suas obras teológicas​​.

Carl R. Trueman destaca que o puritanismo inglês pode ser considerado uma manifestação da ortodoxia reformada com uma ênfase própria. Eles se identificavam com a causa da verdade cristã católica universal e viam a Reforma como essencial para a reformulação de todo o corpo da doutrina cristã​​ (TRUEMAN, 2021).

Como ortodoxos reformados, havia neles um interesse em integrar a tradição em sua formulação teológica. A razão para isto é que os ortodoxos reformados “identificaram a si mesmos e a sua teologia com a causa da verdade cristã católica universal”, pois viam a Reforma como “a chave não apenas para a reforma dos abusos eclesiásticos, mas para reformular todo o corpo da doutrina cristã” (MULLER, 2003, p. 28)

A Diversidade na Abordagem da Tradição

Enquanto alguns puritanos utilizavam a tradição de maneira apologética, outros adotavam uma abordagem mais construtiva, integrando elementos da teologia patrística e medieval em suas formulações teológicas. Isso se deve, em parte, ao contexto polêmico em que estavam inseridos, onde a tradição se tornava útil para responder a novas questões e desenvolver um novo corpus doutrinário.

John Owen, por exemplo, é uma figura central que demonstra essa reapropriação crítica da tradição ocidental. Ele utilizou a tradição patrística e escolástica para formular suas doutrinas, integrando-as com a exegese bíblica cuidadosa. Owen é descrito como um puritano escolástico que, apesar de seu foco na Escritura, não desconsiderava a tradição teológica da Igreja​​.

Conclusão

A relação dos puritanos com a tradição é multifacetada e rica, desafiando as concepções simplistas de sectarismo. Ao mesmo tempo em que defendiam a autoridade singular da Escritura, muitos puritanos reconheciam o valor da tradição como ferramenta hermenêutica e teológica. Figuras como William Perkins e Richard Baxter exemplificam essa tensão entre continuidade e inovação, utilizando a tradição para tanto defender quanto construir suas doutrinas.

Este engajamento profundo com a tradição oferece lições valiosas para os dias atuais, especialmente para aqueles que buscam um diálogo mais enfatizado com a grande tradição cristã. Entender como os puritanos interagiram com a tradição pode auxiliar no resgate de uma perspectiva reformada da tradição, integrando-a de maneira construtiva em nossa formulação teológica contemporânea.

Referências Bibliográficas

  • PERKINS, William. A Forged Catholicisme. Londres: Editora X, 1597.
  • BAXTER, Richard. Methodus Theologiae. Londres: Editora Y, 1681.
  • TRUEMAN, Carl R.. The Claims of Truth: John Owen’s Trinitarian Theology. Paternoster Press, 1998.
  • QUANTIN, Jean-Louis. The Church of England and Christian Antiquity: The Construction of a Confessional Identity in the 17th Century. Oxford University Press, 2009.
  • FORD, Coleman M., “Everywhere, Always, by All”: William Perkins and James Ussher on the Constructive Use of the Fathers, Puritan Reformed Journal 7, 2 (2015): p. 95, Disponível em: https://www.academia.edu/19386160/_Everywhere_Always_by_All_William_Perkins_and_James_Ussher_on_the_Constructive_Use_of_the_Fathers
  •  MULLER, Richard A., Post-Reformation Reformed Dogmatics: The Rise and Development of Reformed Orthodoxy, Ca. 1520 to Ca. 1725, 2nd ed. 1. Grand Rapids Mich.: Baker Academics, 2003.

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